...e para mais alguém.

domingo

O Conto – Parte II

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  De fora, alguns mais velhos que esperavam pelo novo ser foram surpreendidos pelo comportamento sonoro das mulheres e  reconheceram  uma distinta diferença no rumo do parto ,  imperceptível aos mais jovens ou mais ignorantes da tribo,  e olhavam-se num íntimo segredo partilhado nos rostos sérios pintados com a cor do lume .
  E a mulher  tanto gritava. E já exausta gemia quando as forças que sobravam  gritavam por ela. Eram duas vidas que queriam sair de si  sem garantia de por cá ficarem. Uma rasgava-a autoritária, reclamando para si o insondável  Dom dos viventes e a outra estava submissa à tradição carnal das mulheres que lhes toma o corpo em dor para desaguar uma alma.
  Ma´wa , velha ,  que tinha nas marcas da face gravada  a astúcia de enganar as contrariedades de uma terra egoísta ao longo de mais anos do que julgava, desabou atordoada a expressão  do rosto de quem está concentrado na tarefa de confortar uma filha e retirar-lhe um corpo novo  do corpo jovem , feito velho e moribundo de agonia. Aquele nascimento não vinha dar alegria a Ma´wa. De lágrimas nos olhos negros profundos como que o luar coubesse neles escondido , e com um temor sobre-humano olhava as entranhas expostas da filha . Por dentro dilacerava-se também com o que via mas porque a presença vigilante das outras mulheres coibia Ma´wa de  emocionar-se abeirou-se da face da jovem filha e  raspou-lhe o suor da testa .  As outras mulheres silenciaram-se rapidamente o que foi interpretado como um luto pelos homens no exterior do casebre. Uma das velhas, Bapenda , ergueu-se dos joelhos poeirentos , e aproximou-se da cortina de palha que servia de porta desviando-se das outras  mulheres . Desfiou as palhas da cortina e deixou-se ver pelo pequeno rasgo . E a sua cara oculta pela fraca claridade do interior soltou o agouro numa frase pronunciada friamente : “ N´gwami .” -  disse ela. Os homens baixaram o rosto , inquietos e nervosos e pelos seus modos transpareceram às crianças ainda acordadas que a ocasião não distinguia idades para reclamar solenidade. Um falso silêncio - tanto quanto pode ser um silêncio de  África à noite - ainda pousou sobre eles parecendo  querer  exigir autoridade naqueles espíritos desalentados mas Nganupe , a mãe por ser , rasgou a garganta com um grito que ninguém soube dizer se de dor se de tristeza e assassinou com os dentes bem rijos e tensos que lhe queriam fechar a boca aquele silêncio ridículo e miserável que se punha.   Alguns da tribo choravam também. Crianças e mulheres sobretudo.  O curandeiro,  esse tombou-se na poeira e contorcia-se exuberantemente no chão numa estranha manifestação de choro e angústia porventura  teatral . Talvez a posição que detinha naquela povoação o obrigasse a tal . E talvez aquele recambolesco comportamento mostrasse aos outros o quanto temia o jugo dos deuses que haviam designado os acontecimentos. Se ele temia os deuses a tal ponto quem da tribo ousaria acusá-lo  de incompetência no espanto dos maus prenúncios  após tão dramática encenação? Eram as vontades dos deuses certamente. Havia que respeitá-las. E chorava aos deuses que não eram , a sorte má daquela noite até todos os outros sincronizarem a comoção num cântico chorado em conjunto.
  Morte e Vida encontraram-se na tribo dos Bangoe, gladiando-se sobre eles e as suas danças de tristeza. Morte ; Vida ;  seca e chuva. Tudo eles traduziam em dança. E no ar a mistura do fumo do lume, o choro dos homens e das mulheres, o cães que corriam em alerta e a dor que Nganupe chorava ainda no casebre eram a prova  viva que a Vida  ali feita mãe de todos eles  ganhara à Morte . Mas apesar de os eventos não assinalarem qualquer perda no duelo entre as duas havia um  profundo luto vivenciado por todos aqueles negros. Ninguém havia morrido mas um gelado choro de uma criança nascida forçou a mudos todos os que a ouviram pela primeira vez.  Todos ficaram sem falar ou continham a comoção que se transformava prontamente em outras ânsias. O medo havia chegado aos Bangoe. Ma´wa saiu com uma criança maldita nos braços que fora lavada do sangue com cinzas .  “N´gwami” – disse envergonhada e receosa aos outros que a aguardaram por ser agora  avó de uma criança,  que ingénua e pura de tudo ,  havia nascido branca.


Continua.... 

5 comentários:

  1. Estou a gostar...
    nao me e dificil imaginar a cena...
    ...Lambarane...Mayombe...

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  2. Pasme-se o prezado leitor anónimo que tive que pesquisar "Lambarane e Mayombe". E confesso que ainda não li. De resto acrescento que toda esta produção é ficcional e espontânea não tendo ainda este conto um meio bem definido e apenas calculo por alto o final.

    Grato pela visita e convidando-o a outras :


    Peter Byron.

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  3. “... Talvez seja um truque da natureza humana fazer troça directa ou indirecta das angústias...”

    Amigo, só lhe deixo uma única dica. Tentei ler essa parte, a II, mas não consegui devido ao fundo preto e letra branca. Cansa por demais. Espero que isso tb não seja problemas para os demais leitores.
    É isso aí, continue escrevendo sempre, pois tens uma escrita simples que penetra direto no coração nos fazendo refletir sobre comportamentos ou, até mesmo,coisas simples da vida que , muitas das vezes, deixamos pra trás... E nem por isso são menos importantes.
    Um abração

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