...e para mais alguém.

terça-feira

Semente

    Antes de mais agradeço-lhe desde já a visita que indirectamente me faz  neste meu espaço que pretendo que venha a ser de todos. A intenção foi já revelada. Ambiciono trazer dezenas; centenas, milhares ou...dois ou três leitores de toda a proveniência para lhes dar um conto,  como que se fossem eles próprios uma folha numa árvore.  Esta página servirá como laboratório nu  de crescimento  uma planta literária cuja espécie desconheço ainda . Por tal faço-lhe o convite a que a observe crescer, regue-a com comentários, opiniões, críticas e louvores... e não deixe que esta semente minha venha a   perecer sem ser de todos primeiro.

Obrigado.

segunda-feira

O Conto - Parte I


          Numa qualquer planície de África quando o sol laranja e púrpura já se deitava no horizonte dormente e seco deixando a crueldade  nocturna das matas surgir , um choro suado de uma negra fazia-se ouvir entre os tão diversos sons da fauna local misturados com um ar agora fresco que transportava o cheiro encarnado da terra às escuras que se fazia denunciar apenas pelo cândido resquício de luz . E em algures , como que perdida naquela planície , uma fogueira resistia à ligeira brisa que se levantava e lançava-se numa dança de faúlhas  errantes no suave caos da aragem . De uma palhota feita de barro ramagens e troncos achados naquela árida planura vinham os sons de mulheres,  reunidas num concílio ancestral de auxílio a uma parturiente,  que se ouviam  mais concretamente em rezas, danças acompanhadas do ruído  natural  da desordem de quem em grupo familiar aguarda a chegada de uma vida de sabe-se  lá onde.... do outro lado do cá talvez .
   Lá fora sob a abóbada nocturna salpicada de pontos cintilantes os homens permaneciam serenos numa roda , onde por entre a solenidade da ocasião surgiam conversas desconcertantemente banais. Talvez seja um truque da natureza humana fazer troça directa ou indirecta das angústias, como que se aquelas trocas de frases  redundantes e de ocasião desafiassem sem temor as próximas horas  ou  servissem de pausa ao desassossego de quem teme  a morte naquela exibição parida do ciclo da vida
 O lume fazia as sombras dos homens manifestarem-se nos contornos da palhota do parto parecendo que elas mesmo eram  um fogo mudo e apagado numa mística aparição,  unindo a vida estéril das sombras dos homens à iminência de um nascimento enquanto alguns cães passavam ignorantes ao espírito expectante da tribo e faziam de acordo com o que o quotidiano reclamava , prosseguindo por entre os jovens e crianças ainda afastadas da responsabilidade de admitir as obrigações dos mais velhos. E brincavam os mais novos tão vivos como a magnífica noite que celebravam em tal teatro ruidoso da madeira ardente , de  risos e latidos , submetidos porém à grave aflição de uma mulher , que quase morrendo queria fazer nascer.


 Continua....

domingo

O Conto – Parte II

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  De fora, alguns mais velhos que esperavam pelo novo ser foram surpreendidos pelo comportamento sonoro das mulheres e  reconheceram  uma distinta diferença no rumo do parto ,  imperceptível aos mais jovens ou mais ignorantes da tribo,  e olhavam-se num íntimo segredo partilhado nos rostos sérios pintados com a cor do lume .
  E a mulher  tanto gritava. E já exausta gemia quando as forças que sobravam  gritavam por ela. Eram duas vidas que queriam sair de si  sem garantia de por cá ficarem. Uma rasgava-a autoritária, reclamando para si o insondável  Dom dos viventes e a outra estava submissa à tradição carnal das mulheres que lhes toma o corpo em dor para desaguar uma alma.
  Ma´wa , velha ,  que tinha nas marcas da face gravada  a astúcia de enganar as contrariedades de uma terra egoísta ao longo de mais anos do que julgava, desabou atordoada a expressão  do rosto de quem está concentrado na tarefa de confortar uma filha e retirar-lhe um corpo novo  do corpo jovem , feito velho e moribundo de agonia. Aquele nascimento não vinha dar alegria a Ma´wa. De lágrimas nos olhos negros profundos como que o luar coubesse neles escondido , e com um temor sobre-humano olhava as entranhas expostas da filha . Por dentro dilacerava-se também com o que via mas porque a presença vigilante das outras mulheres coibia Ma´wa de  emocionar-se abeirou-se da face da jovem filha e  raspou-lhe o suor da testa .  As outras mulheres silenciaram-se rapidamente o que foi interpretado como um luto pelos homens no exterior do casebre. Uma das velhas, Bapenda , ergueu-se dos joelhos poeirentos , e aproximou-se da cortina de palha que servia de porta desviando-se das outras  mulheres . Desfiou as palhas da cortina e deixou-se ver pelo pequeno rasgo . E a sua cara oculta pela fraca claridade do interior soltou o agouro numa frase pronunciada friamente : “ N´gwami .” -  disse ela. Os homens baixaram o rosto , inquietos e nervosos e pelos seus modos transpareceram às crianças ainda acordadas que a ocasião não distinguia idades para reclamar solenidade. Um falso silêncio - tanto quanto pode ser um silêncio de  África à noite - ainda pousou sobre eles parecendo  querer  exigir autoridade naqueles espíritos desalentados mas Nganupe , a mãe por ser , rasgou a garganta com um grito que ninguém soube dizer se de dor se de tristeza e assassinou com os dentes bem rijos e tensos que lhe queriam fechar a boca aquele silêncio ridículo e miserável que se punha.   Alguns da tribo choravam também. Crianças e mulheres sobretudo.  O curandeiro,  esse tombou-se na poeira e contorcia-se exuberantemente no chão numa estranha manifestação de choro e angústia porventura  teatral . Talvez a posição que detinha naquela povoação o obrigasse a tal . E talvez aquele recambolesco comportamento mostrasse aos outros o quanto temia o jugo dos deuses que haviam designado os acontecimentos. Se ele temia os deuses a tal ponto quem da tribo ousaria acusá-lo  de incompetência no espanto dos maus prenúncios  após tão dramática encenação? Eram as vontades dos deuses certamente. Havia que respeitá-las. E chorava aos deuses que não eram , a sorte má daquela noite até todos os outros sincronizarem a comoção num cântico chorado em conjunto.
  Morte e Vida encontraram-se na tribo dos Bangoe, gladiando-se sobre eles e as suas danças de tristeza. Morte ; Vida ;  seca e chuva. Tudo eles traduziam em dança. E no ar a mistura do fumo do lume, o choro dos homens e das mulheres, o cães que corriam em alerta e a dor que Nganupe chorava ainda no casebre eram a prova  viva que a Vida  ali feita mãe de todos eles  ganhara à Morte . Mas apesar de os eventos não assinalarem qualquer perda no duelo entre as duas havia um  profundo luto vivenciado por todos aqueles negros. Ninguém havia morrido mas um gelado choro de uma criança nascida forçou a mudos todos os que a ouviram pela primeira vez.  Todos ficaram sem falar ou continham a comoção que se transformava prontamente em outras ânsias. O medo havia chegado aos Bangoe. Ma´wa saiu com uma criança maldita nos braços que fora lavada do sangue com cinzas .  “N´gwami” – disse envergonhada e receosa aos outros que a aguardaram por ser agora  avó de uma criança,  que ingénua e pura de tudo ,  havia nascido branca.


Continua.... 

quarta-feira

O Conto - Parte III

  Os outros repudiaram aquela aparição nua de roupa e de negrura com medo e não entenderam  a intenção dos deuses de enviar-lhes um Ngwami porque tinham  cumprido todos os rituais de adoração como ditavam as leis e o curandeiro. Tinham em frente o augúrio de anos de fome e doença na forma de uma criança de um tal género do qual tinham apenas ouvido falar pelo conto dos mais antigos e esses mesmo nunca tinham testemunhado essa vinda da má sorte enquanto vivos. De entre os escombros das almas dos homens em torno do lume houve um que se levantou e dirigiu-se pesado com a maldição do céu para dentro da sua palhota. Era Bandu , o companheiro de Nganupe. Quando entrou olhou para  a sua parceira deitada numa cama primitiva feita de paus e peles estendidas , de costas para a filha albina que berrava e  pedia  amparo de uma mãe. Ma´wa insistia a que ela pegasse na recém-nascida mas e Nganupe?  A jovem soltava um choro morto presa num estupor posto nos olhos. Ma´wa pegou na criança e colocou-a nos braços da filha em teimosia e gritando mas ela não ouvia. Estava perdida em si , percorrendo a selva de lamentos , rancorosa de ser mãe de um dejecto que veio ruir-lhe os sonhos que tinha com Bandu e pô-la mal vista aos olhos das outras mulheres férteis e abençoadas. Se ao menos a criança tivesse vindo morta…Se ao menos ela tivesse morrido seria uma dor menos insidiosa que os espíritos lhe dariam. Quando sentiu o calor da filha pela primeira vez ficou repugnada , era um calor asqueroso de ranço de imperfeição . Pode alguém amar o que é maldito? Mesmo uma mãe?
  Bandu sentou-se no chão apoiado nas costas pela parede de paus e terra e nem pediu a Ma´wa que ficasse quando esta exausta também decidiu ir para a sua habitação já segura de ter a sua parte de trabalho feito.  Em frente tinha a mulher que escolhera para si desde criança . Pensava em como os anos não podiam deixar adivinhar a vinda de um dia em que a visse tão sofredora e partilhava da dor daquela mulher de cabelo adornado de peles e fitas com o luar reflectido-se na pele rica e lustrosa  , com peitos fartos de leite,  agonizante que procurava recompor-se com alguma esperança vinda sabe-se lá de onde do desgosto que lhe causava uma maldição nascida há momentos e que a humilharia enquanto fosse viva. Ó África cruel que por entre a morte leonina e nas sombras dos abutres não espalhas tu tanta perfídia como aquela que deste a experimentar a essa filha tua . Porque lhe inauguras a maternidade assim tão madrasta? Até tu sabes ser doce quando deixas correr no teu rosto de planície a brisa refrescante que impõe alívio a todo o ser vítima dos teus afrontamentos. E choves no teu rosto despejando a Vida em gotas quando queres encher os lagos e mostrar a tua dilúvica bondade. Que fazes tu agora Àfrica aos olhos da jovem? Quere-la ver padecer do fruto da agrura que te faz fama tomando-a como mais um qualquer ser ao qual não aprovas misericórdia como as presas serradas nas bocas das feras que morrem sem qualquer advogado ou protector? Porque lhe dás uma dor enlaçada com  responsabilidade maternal? Deixa a pequena  recompor-se ó terra bruta. E faz o sono tomar-lhe o corpo.
 Nganupe adormeceu e a criança também . Bandu ficou deste lado dos sentidos aguardando  uma vida incógnita a estrear já no amanhã que queria adiar,  e assustado , desconhecedor da vida, não reagia… Esperava que o sol não viesse iluminar-lhe os olhos tristes outra vez. Nem à mulher, nem à filha que nunca terá nome,  somente o epíteto.  Que Àfrica , a tão bruta das terras tenha particular misericórdia de ti já amanhã criança , mais do que de todas as outras...


Continua.... 

domingo

O Conto - Parte IV


  No início do dia , o sol despejou-se lá do seu alto até à terra seca e emanante de luz por toda a parte, como que se o brilho da manhã que acontecia fosse líquido , e a aridez do solo um mar de calor alumiado, a correr etéreo e imenso por entre as nervuras da terra e dos arvoredos, completando-os omnipresente.
  Alguns Bangoe já despertos aos primeiros tons de dia comentavam entre si o futuro, e juntavam-se-lhes os que acordavam que querendo achar alguma orientação sobre os dias vindouros escutavam quem aparentava ser mais sábio. A tribo vivia a primeira manhã da Ngwami esperando por ela apesar do manto de pessimismo e desgraça que a lenda lhe atribuía, e queriam vê-la com mais detalhe , protegidos na segurança do grupo . Uns pediam para entrar na habitação de Nganupe para saciar a curiosidade, descartando o respeito ao jovem casal ,outros aguardavam mais de longe que a qualquer momento a mulher surgisse com a aberração nos braços mas Nganupe absorta na solidão íntima da sua tristeza nem capaz era de levantar-se. Só Bandu interpelava as vozes que exigiam a aparição do recém-nascido dizendo-lhes que queriam estar sós. De fora ouviu-se a voz de Ma´wa irrompendo pelo coro de curiosos, repreendendo-os por perturbarem o descanso da sua filha antes de entrar no casebre. Quando a velha entrou sentiu pela primeira vez um género de sentimento de laço à neta ou alguma raspa de afecto que a prepocupou quando viu Nganupe de costas para a criança à beira da cama, na iminência de cair, justificada pela distração de Bandu , quando lidava com os curiosos que os importunavam. Ma´wa pegou na neta friamente porém, e colocou-a de novo entre os braços da filha que tinha nos olhos duas sádicas fontes que irrompiam sal desde que parira.
  O dia passou algumas horas e o lume da noite passada estava já seco e findo , como o ontem , e quando o interesse dos Bangoe dissipou-se temporariamente nas tarefas quotidianas Bandu saiu mas enquanto caminhava reunia-se grande parte da tribo á sua frente, e o jovem avançava eito a eles, já com o rosto e estatuto de quem ostenta vergonha na prole. As circunstâncias obrigavam-no a pousar os olhos na terra, sem entender a origem daquele peso enorme que lhe punha o olhar  raso na presença dos que o observavam a aproximar-se , fazendo-o sentir-se um estranho e indesejado , e seguiu confuso até àquela assistência inédita, deixando transparecer na hesitação dos passos a necessidade de aprovação da tribo. 
  Entre eles havia divisão . Uns regateavam misericórdia ou algo semelhante a compaixão para com um pai jovem , outros desdenhavam-no por razões ainda desconhecidas e que o tempo haveria de justificar através da desgraça futura que contagiaria aquele povo mais tarde ou mais cedo. E assim acendeu-se um novo lume em torno da fogueira de ontem já apagada , desta vez ardido nas palavras que se soltavam calorosas nos fôlegos gastos em ameaças , insultos e acusações. Chegara a maldição silenciosa , sem que que os negros dessem conta, ocupados que estavam a discutir vincadamente divididos . Nem um dia tinha de vida e já a presença da Ngwami demonstrava o jus ao agoiro.
“ Matem-na! “ – Gritavam alguns. Não seria a primeira vez que uma alma pouco vivida seria abatida por desejo dos outros. Muitas houveram nos Bangoe que por imperfeição ou algum detalhe particular foram eliminadas e segundo esse critério a Ngwami teria poucas hipóteses de prosseguir a vida que era regateada a metros de si num licitamento aceso entre os que pretendiam a eliminação da má sorte pela raiz e os que por laços de sangue mais próximos do casal rebatiam o mando infanticída que se revelava tenaz , na crescente animosidade. 


Continua.... 

sábado

Um Conto para Si - Parte V



Nganupe ouvia os argumentos da tribo protestando lá fora e sentia o pronunciado e cauteloso silêncio de Bandu que não se manifestava por receio de não saber achar na mente forma de responder à turba acalorada. Entretanto nos braços da jovem deitada a Ngwami  descansava serenamente ,alheia ao além abraço de uma mãe ausente de alma .  Ma´wa estava de pé em guarda, escutando também  os outros que prosseguiam na batalha de palavras e razões.  Mas a velha mulher reagia consciente ao comando natural de uma matriarca que impunha-lhe a vontade mor de resguardar a descendência independentemente do grau, enquanto procurava discernir  por entre os gritos qualquer ameaça na intenção de quem os soltava na voz e preocupada tentava atribuir-lhes uma proveniência na forma de um rosto que pudesse reconhecer por entre todos os rostos com que lidou toda a vida. 
"- Matem-na! "
Ma´wa virou-se incrédula para a filha vincadamente oposta ao que ela manifestara friamente num grito abafado pelo cansaço e avançou para mais perto da filha tirana que soltava a angústia pela boca.
" - Matem-na ! "  - novamente pediu aos outros lá fora, desta forma mais aguda e sonante alarmando a velha . Ma´wa  reagiu como que se o grito de ordem de Nganupe lhe viesse cobrar um novo filho e para salvaguardar essa falsa e indirecta nascença apertou os braços longos e esguios em torno da face e dos lábios da filha que resistia a esse aperto do corpo envelhecido da mãe aflita. Nganupe apesar da convalescência de um parto era jovem e robusta , ao contrario da mãe que já não estava tão adornada de vida e juventude, embora fosse mesmo assim reconhecida pela sua força e carácter. Era uma verdadeira leoa ! E que agora em bom fim de investida dominava a garganta da filha, conquistando a continuidade do silêncio dentro da palhota . Depois de a acalmar pegou novamente na Ngwami e colocou-a nos braços  de Nganupe  contrariada em receber o fardo imposto e dorminte.  A jovem mãe continuou o pranto com o rosto molhado de onde as lágrimas caiam e vinham dar ao chão e retomou a moribunda explanação da infame sorte que teve .Pelo lamento manso reconheceu a aceitação à vontade da velha mãe em aceitar a filha branca e não mais falou, a gritaria lá de fora tomou-lhe o lugar da tristeza que apregoava momentos antes.


Continua....